sábado, 7 de fevereiro de 2009

A estoria de Arawate - Homem Arvore

. O pajé Arawaté descende da Tribo Guanás, tribo que possui o inconversável idioma das pedras. Uma linguagem sutil, a que melhor abrange o silêncio das palavras. É uma língua adorável, mas leva muito tempo para se dizer alguma coisa com ela. Os Guanás não dizem nada com ela, a não ser que valha a pena gastar um longo tempo para dizer e para escutar. Apesar de ter um baixo volume para os ouvidos desatentos, a Língua Guanás continha um murmúrio, como se dentro de suas palavras corresse um rio entre pedras. Para os Guanás, a palavra nada mais é que um mero veículo para alcançarmos o reino mágico, onde a união entre o silêncio e o indizível que nos resgata da banalidade do cotidiano. O rumor das palavras é muito mais importante do que o sentido que elas tenham.
. Quando jovem Arawaté saiu de sua aldeia à procura de penas de Anapuru, uma ave mística e extremamente rara, mas indispensável para terminar seu cocar de poderosas virtudes mágicas. Mesmo dentre centenas de outras penas, uma única pena de Anapuru é capaz de transformar e potencializar o cocar, tal a sua eficácia. Levou consigo na sua busca apenas dois instrumentos mágicos: um abridor de amanhecer e uma fivela de prender silêncio.
Caminhou muito, teve que ir até a unha do dedão do pé do fim do mundo onde encontrou o Anapuru, a mais cara e rara de todas as aves. Enorme e formosa, tinha penas que exibiam quase todas as cores da floresta com grande perfeição e harmonia. Penas amarelas, vermelhas, azuis, pretas, verdes das mais variadas tonalidades salpicadas e espargidas por todo o corpo.
Para colher a pena foi fácil. Arawaté foi até o ninho e colheu muitas penas mágicas de diversas cores. Duas pretas e uma vermelha para o seu cocar de guerra, uma pena preta e duas amarelas para o seu cocar de sonhar... Uma das penas Arawaté separou especialmente para a confecção de uma flecha encantada. Ela sempre retorna às mãos, manchada de sangue do inimigo. Mas se atirada quando a vida do arqueiro não correr grande perigo, a flecha haverá de se voltar contra ele.
. Ele montou um cocar todo verde para celebrar a alegria de sua busca e, apesar de ser uma noite extremamente escura onde o bacurau feridava o silêncio e as estrelas repousavam como flores de luz no lago profundo do céu, Arawaté pegou seu caminho e feliz retornou para sua aldeia.
. Na verdade, a Noite desempenha um papel revelador. Somente no escuro se vê o que a luz do dia oculta. Exausto e com uma estranha sensação de sufocamento que tomou conta dele, como se o ar fosse muito escasso e rarefeito, e diante de um milenar Cedro, Arawaté parou para descansar.
. As árvores são ricas em um conhecimento próprio. Têm poderes de outorgar sonhos visionários ou proféticos. Algumas árvores dão acesso ao mundo do passado, árvores que guardam na alma secretamente inscritas todas as lembranças memoriais de Gaia. A árvore conjuga em si as potências da Terra, do ambiente, do céu. Apesar de cada árvore ter sua personalidade única e própria, elas têm uma característica comum: delas emana muito amor. A visão do mundo mágico da Natureza é um alimento para a alma e existem árvores que são verdadeiros centros destiladores de energia. A contemplação de uma árvore permite ao observador se transformar interiormente. Não há maior modificador de consciência que a observação das forças mágicas da Natureza. Os atos humanos aparentemente grandiosos e magníficos se revelam estarrecedoramente insignificante na perspectiva dos vegetais e da Eternidade.
. E o que falar sobre o Cedro de vasto tronco cinza e flores amarelas que já presenciou o alvorecer e o crepúsculo de mais de dez mil primaveras? Carregados de flores que funcionam como receptores de atividade celeste, bem intensa nesta noite sem Lua, os seres vegetais são capazes de perceber e reagir ao que acontece em seu ambiente a um nível de sofisticação que ultrapassa em muito a sensibilidade humana.
. Antes de dormir, Arawaté cobriu o corpo com um musgo que cobria as raízes daquela árvore anciã, a fim de se proteger dos mosquitos e muriçocas que infestavam a noite quente e úmida da mata. Ingenuamente, sem reconhecer esta antiga tradição ancestral das árvores, que cobrir o rosto e o corpo com o musgo das raízes é sinal de reconhecimento e amizade. O Cedro manifestou sua satisfação fazendo vibrar suas folhas, e suas flores se abriram como se uma primavera inteira florescesse num segundo, exalando mais ainda o seu aroma. Seu odor foi tão profundo que levou o espírito de Arawaté numa exaltação perturbadora. Uma curiosa sensação de bem-estar que penetrou Arawaté com sua carícia. É na Terra que dormem os oráculos. Das brumas surgiu Ê-vê, um senhor idoso vestido com alguma coisa semelhante a uma casca de árvore ou se aquilo era seu couro é difícil de dizer, e com um pássaro bravio no ombro. Quando Ê-vê apareceu, as árvores ergueram seus galhos, e todas as folhas estremeceram e farfalharam. Ê-vê murmurou com a sua voz profunda como um instrumento de sopro muito grave para Arawaté:
. -Em verdade a Terra é a Grande Deusa e a Grande Prostituta. Ela se entrega a todos, mas ninguém a possui jamais. Eu sou Ê-vê, o espírito das árvores, cavalgo o dragão que vive no fundo da Terra. Aqueço e alimento o fogo que faz brotar a vida do chão. Imperecível é o espírito da profundeza, como o seio profundo da maturidade. Céus e Terra radicam no seio da mãe, são a origem de todos os vivos, que espontaneamente brotam da Vida. Faço-me crer pobre e dura, cruel e distante, possessiva e voraz, mas os que se entregam a mim sem reservas, com todo amor, dou meu leite fluídico mesclado de raios lunares, estrelares e solares. Respira-me enquanto exalo meu fôlego, pois ele é habitado por forças de um poder inimaginável. Concedo inspiração, conhecimentos e oráculos, pois na seiva das árvores circula impregnada com as vibrações dos planetas e das estrelas. Em seu tronco está escrito o devir celeste. As árvores são antenas de Gaia e as flores os seus olhos. As árvores tudo realizam e nada consideram seu. Tudo fazem e não se apegam a sua obra. Não se prendem aos frutos de sua atividade. Terminam as suas obras e estão sempre no princípio e por isto suas obras prosperam.
. A sensação que Arawaté teve ao ver os olhos de Ê-vê era como se houvesse um oceano atrás deles, cheios de eras de memórias e de um pensamento constante, longo e lento como as ondas; mas, na superfície, faiscava o Presente como o sol tremeluzindo na face de um lago prateado, ou nas folhas externas de uma imensa árvore. Ê-vê era um Deus que não exigia adoração e não punia ninguém; ele apenas propunha e lembrava que existir é uma graça infinita, e que a Morte, longe de ser temida, é a continuação natural da felicidade de viver.
. - Posso ver e ouvir, cheirar e sentir muita coisa ainda. Onde eu fico, olho ao redor, nas manhãs agradáveis, e penso no sol, e no Campo Cheiroso além da floresta, e nos gaviões e nas nuvens, e no desabrochar do mundo. O que está acontecendo? O homem branco – prosseguiu Ê-vê – já não me honra mais. Quantas árvores derrubadas e queimadas pela estupidez humana. Algumas eles apenas cortam e deixam apodrecer. Ele me corrompe, me corrói, me saqueia e me abandona. O homem se tornou meu parasita. Há restos de tocos e queimadas onde já existiram bosques cantantes. Com ele já não posso me comunicar como faço com você, Arawaté. A sabedoria milenar dos vegetais está situada no infinito de nós mesmos.
. Dito isso e antes de se esvaecer por completo deixando Arawaté completamente embriagado por suas palavras, Ê-vê lhe serviu o néctar da imortalidade, uma bebida que manterá Arawaté verde e crescendo por um longo, longo tempo, oferecendo preciosidades e toda espécie de ilusões e revelações. Depois Ê-vê transmitiu os caminhos para Arawaté resgatar este conhecimento; e, a partir desse momento, surgiram às sessões xamânicas que nos acompanham desde então, nos auxiliando no resgate dessa sabedoria milenar dos vegetais.
. A partir deste dia, a vida de Arawaté se transformou inteiramente. Sua cama era coberta por uma grossa camada de grama seca e samambaias. Era macia e quente e tinha um aroma delicado. Ele viveu por muito, mas muito tempo mesmo, comendo plantas e ervas-daninhas da floresta, e só comia as frutas que as árvores deixavam cair em seu caminho. Passava os dias meditando e fazendo amizade com todos os animais, aves e peixes do rio. Os menos interessados em si próprios são os melhores para interagir com os outros seres. Tinha como habilidade menor saber ler as estrelas.
. Certa feita um passarinho pediu para Arawaté ser a sua árvore. Arawaté aceitou feliz e honrado seu dever de árvore. Nestes dias Arawaté aprendeu de Sol, de Céu e de Lua mais do que em qualquer escola. Aprendeu com a Natureza o perfume de Deus. Arawaté se envaidecia quando era a árvore escolhida para o entardecer dos pássaros. Sob o efeito dos fascínios dos gorjeios dos pássaros, as árvores deliram. As árvores sabem que quando o pássaro está enamorado ele gorjeia. No gorjeio do pássaro inclui a sedução. As flores dessas árvores nascerão mais perfumadas. Estas árvores são provedoras de poesia como as aves e os ipês floridos na floresta. Arawaté agradeceu aos pássaros aquele “estar” árvore porque ele fez amizade com muitas borboletas.
. Um dia, enquanto Arawaté estava completamente absorvido pelo orvalho da manhã, um caçador o confundiu com uma caça e o surpreendeu flechando o seu braço. Com o olhar arregalado de espanto e deleite, Arawaté viu que, ao invés de correr sangue do seu braço, jorrava seiva. Embora não percebesse, quando ele dançava, sua dança contagiava a todos com sua energia e vigor e todos dançavam com Arawaté: os ventos, as nuvens, as ondas. Nada nem ninguém conseguia resistir a sua dança. Todos os animais e plantas, e até mesmo as folhas caídas no chão, embarcavam no seu ritmo. Arawaté sabia o nome de todos os ventos e conhecia todos os assobios de chamar passarinhos. A maioria das vezes ele era maleável e delicado como as folhas e flores, porém também sabia ser duro como as velhas raízes, quando o perturbavam. Ele nos legou este conhecimento da sabedoria ancestral do vegetal. Antes de Arawaté, as árvores estavam adormecidas, só sussurravam entre si. Arawaté começou tudo, despertando as árvores e ensinando-as a falar Guanês e aprendendo sua fala-de-árvore, compuseram várias músicas em conjunto, Arawaté e as árvores, numa longa cadeia dourada contínua de sons musicais.
. - Nada existe no mundo mais belo que a flor, nem mais essencial que uma planta – dizia sempre Arawaté – sei o nome original que recebeu cada planta quando a casca da Terra se abriu, oferecendo-se ao Céu. Tenho o calor delas todas correndo no meu sangue. A verdadeira matriz da vida humana é a vegetação que cobre a Terra. Do berço à sepultura, recorremos aos vegetais para comer, vestir, morar, ter energia, fibras, cordas, instrumentos musicais... As flores nos acompanham do nascimento ao casamento e até depois da morte. Percebi que as árvores são mais competentes em aurora do que os homens. Quem vaga pode conhecer caminhos, mas quem observa as estrelas pode vir a conhecer as direções, e digo ainda: é mais feliz quem descobre o que não presta do que quem descobre ouro. O homem realizado não tem desejos de dentro, nem exigências de fora. É prestativo em se dar e sincero em falar, suave no conduzir e poderoso no agir. Age com serenidade por isso é incontaminável. Devo agora viver sozinho na floresta. Assim, nem a alegria, nem a tristeza permanecerão em mim, nem o medo ousará ficar em minha presença. As árvores morrem eretas.
. Arawaté visitava o futuro das palavras, conhece instantaneamente o passado e o futuro de toda a árvore que vê, contava histórias de abelhas e flores, do jeito de ser das árvores e das estranhas criaturas da floresta. Freqüentemente sua voz se transformava numa canção, e as sementes se multiplicavam em suas mãos; dizia que era muito fácil receber o ensinamento das árvores. Era só contemplar o Universo com alma de criança. As crianças podem comandar os Deuses. Somente uma criança que vive dentro de nós é quem tem a chave que nos permitirá abrir a caverna onde dormem os tesouros de nossa alma. Cada espaço, cada lugar, cada árvore, pedra ou elemento possui sua caverna secreta, plena de conhecimentos. Basta se pôr em harmonia com eles e passar a ver. O mais árduo é acreditar que isto seja possível, isso é o mais difícil.
. A Natureza é o berço da alma e é só com o convívio com Ela, reflexo da imaginação divina, é que alguém pode se transformar interior e exteriormente. O Ego é o pior inimigo do Eu, mas o Eu é o melhor amigo do Ego. É ao sopro do Vento, ao correr das Chuvas, a mordência do Sol, ao mistério das Noites, ao sabor da Lua que se passa a queimar os venenos dos quais o Ego é o principal recipiente e esconderijo. O Ego é um péssimo senhor, mas é um ótimo servidor.

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